Sou  de opinião que as discussões sobre como melhorar o sistema de saúde  pública no Brasil não devem ter como foco uma suposta ineficiência da  gestão pública.
por Sérgio Cruz, Médico Assistente do Hospital Universitário da USP
O artigo do Dr. Roberto Bittencourt, professor da Faculdade de Medicina da PUC de Brasília, intitulado
 “A situação medieval dos hospitais”,  publicado na edição número 2.967 da Hora do Povo, traz alguns aspectos  importantes sobre a situação das emergências dos grandes hospitais  públicos brasileiros. Motivado por ele, tomei a iniciativa de contribuir  com o debate, apresentando também algumas reflexões que venho fazendo  sobre o tema. 
Sou de opinião que as discussões sobre  como melhorar o sistema de saúde pública no Brasil não devem ter como  foco uma suposta ineficiência da gestão pública. Essa forma, bastante  difundida de abordagem do problema, quase sempre concluindo pelo baixo  “desempenho” dos hospitais públicos, subestima o sub-financiamento  crônico da saúde e tem, por isso, servido – intencionalmente ou não – a  grupos que usam as debilidades reais do sistema para denegrir a gestão  pública e defender a privatização da saúde.
Penso que as causas da superlotação das  emergências dos hospitais públicos são muito mais complexas do que as  apontadas por essa visão. Ela não é fruto de uma simples “demora” na  internação e alta dos pacientes. Não há como aumentar significativamente  o desempenho clínico de uma unidade de forma isolada, quando não há  integração, quando estão ausentes os parceiros complementares, quando  faltam ambulatórios, inexistem postos de saúde e são raros e  desarticulados os médicos de família. Estou de pleno acordo com o autor  que as dificuldades dos hospitais públicos são fruto da lentidão na  consolidação do sistema de saúde. E isso ocorre exatamente pela inversão  de prioridades, pelo descaso com a saúde, pelos contingenciamentos de  verbas e pela falta de uma fonte fixa e segura de recursos para o setor.  É certo que existem problemas de gestão. Mas o maior deles é a  sabotagem e a desarticulação do sistema, patrocinadas, não pelos  gestores públicos, mas pelos arautos da privatização infiltrados na  administração do setor.
Há um detalhe importante que deve ser  registrado nesse debate: os adversários da saúde pública não deixaram de  existir com a Constituinte de 88. Na verdade, após a nova Carta, eles  apenas mudaram sua forma de agir e passaram a sabotar o SUS  internamente. Afinal, não podemos esquecer que a luta pela criação do  Sistema Único de Saúde (SUS) enfrentou monopólios poderosos. Foi, sem  dúvida, uma das batalhas mais duras e difíceis que o nosso povo travou.  Ela culminou, no ano de 1988, com a garantia constitucional da saúde  como um “direito do cidadão e um dever do Estado”. Sem dúvida, uma  grande vitória.
No entanto, infelizmente, 23 anos  depois, este preceito ainda não se tornou realidade para a maioria do  povo. Apesar do avanço político de 88, iniciou-se naquela mesma época  uma onda neoliberal que ganhou fôlego no Brasil e no mundo. Por conta  disso, vivenciamos, desde então, uma verdadeira “cruzada” contra as  conquistas sociais e o patrimônio do povo. Infelizmente, a saúde não  escapou a tudo isso. Derrotados em seu intento de impedir a criação do  SUS, os privatistas, como dissemos, passaram a agir para destruí-lo. E  são exatamente os gestores públicos, tão criticados por suas debilidades  – muitas delas reais – um dos setores que seguem lutando contra eles.
NEOLIBERALISMO
No geral, a partir do governo Collor e  FHC, o discurso era uníssono: diminuir o Estado, privatizar, demitir  funcionários públicos, para “aumentar a eficiência”. Na saúde, em  particular, três armas foram utilizadas contra o SUS: a imposição do  sub-financiamento crônico, a sabotagem da consolidação do sistema e a  orquestração contra a gestão pública. Os dados do grau de  sub-financiamento a que foi submetido o sistema de saúde, revelam o  quanto ainda falta lutarmos em favor do SUS.
De acordo com o relatório da OMS, o  Brasil está entre os 24 países que menos destinam recursos à Saúde. No  ano 2000, o país designava 4,1% do orçamento nacional para esta área. A  partir de 2003 houve um crescimento, levando esta porcentagem a 8,6%,  porém, esse número ainda representa menos da metade da média mundial, de  13,9%. Em países desenvolvidos, cerca de 16,7% do orçamento vai para a  Saúde. Em 2011, a Lei Orçamentária da União destinou R$ 77 bilhões para o  Ministério da Saúde. No entanto, este montante representa menos de 2%  do PIB projetado para 2011. O percentual mínimo estabelecido pela OMS  para países com a saúde universalizada é que sejam gastos pelo menos 6%  do PIB com a saúde pública. Somando-se os investimentos estaduais e  municipais, os recursos públicos nos últimos anos não chegam a 3,6% do  PIB.
No total, o Brasil gasta 8,4% do PIB em  saúde. Números que aparentemente colocariam o país no patamar de nações  como Holanda (8,9%), Noruega (8,9%), Itália (8,7%), Inglaterra (8,4%),  Espanha (8,5%) e Austrália (8,9%). Só que, deste total, 58% é consumido  no setor privado. E apenas 42% ficam na saúde pública. Países que  possuem um sistema universal de saúde como o nosso devem necessariamente  apresentar um predomínio dos gastos públicos. O gasto per capita em  saúde no Brasil é de R$ 837, mas no setor público ele é de R$ 390. Esse  número chega a US$ 2.671 na Espanha, US$ 2.686 na Itália, US$ 2.992 no  Reino Unido e US$ 3.357 na Austrália. Em relação ao orçamento previsto  para 2011, só 3,64% são destinados para a saúde pública, enquanto a  previsão de gastos com juros reais no ano é de 8,63% (R$  169.870.725.435,00), ou seja, mais do dobro do que é destinado para a  saúde.
O Estado, apesar de ficar com apenas  42% do total gasto em saúde, atende 80% da população, cerca de 160  milhões de pessoas. Enquanto isso, o setor privado, que movimenta quase  60% do total dos recursos, o faz no atendimento de apenas 20% da  população. É por essas e por outras, que deve ser muito fácil a tão  decantada “gestão privada”. Mas, em que pese a escassez de recursos  públicos, as estatísticas de atendimentos do SUS são avassaladoras,  quando comparadas com o setor privado. Certamente temos que avançar  bastante na qualidade da gestão do SUS. Mas é necessário reconhecer que a  gestão pública da saúde, nas condições em que ela se desenvolve, é, no  mínimo, heroica.
Voltando às emergências. Elas estão  lotadas, sim. Mas é evidente que isso ocorre porque os recursos para a  atenção primária são ridículos. Apenas 30% do orçamento da saúde é  destinado à atenção primária. É fato inquestionável que, com esses  recursos, não pode haver postos de saúde, médicos de família, unidades  de pronto atendimento e ambulatórios na quantidade necessária para  atender as necessidades crescentes da população.
Mesmo a relação leito/pacientes, que no  Brasil se aproxima da taxa considerada adequada, 2,5 e 3 leitos para  cada mil habitantes, não expressa a realidade do país. Este índice  inclui milhares de leitos privados, quase todos inacessíveis à grande  maioria da população. Os leitos conveniados do SUS também são  insuficientes e vêm diminuindo. Só na Região Metropolitana de São Paulo,  15 hospitais privados conveniados ao SUS fecharam as portas nos últimos  cinco anos. Segundo o IBGE, entre 2005 e 2009 o país perdeu 11 mil  leitos de hospitais. No mesmo período, enquanto os leitos particulares  diminuíram 5,1%, os do SUS aumentaram 2,6% – não foi suficiente.
PRIVATIZAÇÃO
Para agravar a situação, em grandes  cidades brasileiras, como São Paulo, Rio de Janeiro, Salvador, e outras,  as unidades de saúde pública, por conta da capitulação à campanha de  difamação contra a gestão pública, estão sendo entregues diretamente a  grupos privados. As organizações sociais (OSs) que assumem essas  unidades passam a adotar a lógica privada. Não trabalham mais com  “portas abertas”, viram “referência” e não realizam mais procedimentos  complexos e dispendiosos. E, mais, conforme denúncia divulgada  recentemente, 80% das OSs, “gestoras” privadas da saúde, não prestam  contas dos recursos recebidos. Um verdadeiro escândalo. Já os hospitais  que se mantêm públicos, permanecem com suas portas abertas e seguem  sendo rigorosamente controlados. Geralmente atendem as emergências 24  horas. Acolhem todos os casos que chegam em sua porta, e, evidentemente,  permanecem lotados. Muitas vezes, na maioria das regiões, o  pronto-socorro do SUS é a única alternativa de atendimento à população  num raio de muitos e muitos quilômetros.
A falta de recursos e de investimentos  na atenção primária, somada ao “fechamento” das portas das unidades  administradas por OSs, acaba forçando a população a procurar as  emergências. É por isso que elas estão se tornando inviáveis. Qualquer  um sabe que a grande maioria dos pacientes que procura atendimento nos  PSs dos grandes hospitais poderia ter seu problema resolvido em unidades  de atenção primária. Cerca de 80 a 90% dos atendimentos são de casos  leves. Somente 10% a 20% deles precisam realmente de intervenção  emergencial. E, com as emergências lotadas, as vagas nas enfermarias  também desaparecem. Não há como evitar isso. Essas vagas são ocupadas  tanto pelos pacientes emergenciais como pelos doentes de ambulatório.  Por mais que se agilizem internações e altas, as enfermarias desses  hospitais não têm como atender a demanda.
E se não bastasse essa situação, surgem  agora as imorais “duas portas”, criadas em hospitais públicos do país.  Nascidas nas entranhas da “gestão privada”, elas trazem como  consequência dificuldades cada vez maiores para a referência e a contra  referência dos pacientes e também para a realização de exames  complementares. Isso desarticula o sistema. Os pacientes do SUS passam a  esperar em filas cada vez maiores para conseguir internações e exames.  No Incor de SP, por exemplo – onde essa imoralidade virou até lei – para  um paciente do SUS conseguir um exame demora meses, enquanto para o  paciente particular ou de convênio tudo é feito na hora. Internação,  então, nem se fala.
São esses, a meu ver, os principais  problemas que devem ser enfrentados nos debates e nos fóruns de decisão  sobre a saúde pública no Brasil. Enfatizar a falta de verbas e a falta  de prioridade na saúde. Barrar a destruição do SUS, impedir sua  privatização e derrotar os sabotadores incrustados no interior do  sistema. Seguir defendendo o fortalecimento do Estado e da saúde  pública. Transferir recursos da especulação para garantir o necessário  aumento das verbas para a saúde. Essas são, em minha opinião, as  bandeiras que garantirão o fortalecimento do SUS e viabilizarão a  humanização real da saúde no Brasil. Certamente, com o aprofundamento  dessas discussões, estaremos em condições de avançar muito também no tão  almejado aperfeiçoamento da gestão pública em saúde.