Postado em: Sérgio Cruz
– 28/06/2011 Sou de opinião que as discussões sobre como melhorar o sistema de saúde pública no Brasil não devem ter como foco uma suposta ineficiência da gestão pública.
por Sérgio Cruz, Médico Assistente do Hospital Universitário da USP
por Sérgio Cruz, Médico Assistente do Hospital Universitário da USP
O artigo do Dr. Roberto Bittencourt, professor da Faculdade de Medicina da PUC de Brasília, intitulado “A situação medieval dos hospitais”, publicado na edição número 2.967 da Hora do Povo, traz alguns aspectos importantes sobre a situação das emergências dos grandes hospitais públicos brasileiros. Motivado por ele, tomei a iniciativa de contribuir com o debate, apresentando também algumas reflexões que venho fazendo sobre o tema.
Sou de opinião que as discussões sobre como melhorar o sistema de saúde pública no Brasil não devem ter como foco uma suposta ineficiência da gestão pública. Essa forma, bastante difundida de abordagem do problema, quase sempre concluindo pelo baixo “desempenho” dos hospitais públicos, subestima o sub-financiamento crônico da saúde e tem, por isso, servido – intencionalmente ou não – a grupos que usam as debilidades reais do sistema para denegrir a gestão pública e defender a privatização da saúde.
Penso que as causas da superlotação das emergências dos hospitais públicos são muito mais complexas do que as apontadas por essa visão. Ela não é fruto de uma simples “demora” na internação e alta dos pacientes. Não há como aumentar significativamente o desempenho clínico de uma unidade de forma isolada, quando não há integração, quando estão ausentes os parceiros complementares, quando faltam ambulatórios, inexistem postos de saúde e são raros e desarticulados os médicos de família. Estou de pleno acordo com o autor que as dificuldades dos hospitais públicos são fruto da lentidão na consolidação do sistema de saúde. E isso ocorre exatamente pela inversão de prioridades, pelo descaso com a saúde, pelos contingenciamentos de verbas e pela falta de uma fonte fixa e segura de recursos para o setor. É certo que existem problemas de gestão. Mas o maior deles é a sabotagem e a desarticulação do sistema, patrocinadas, não pelos gestores públicos, mas pelos arautos da privatização infiltrados na administração do setor.
Há um detalhe importante que deve ser registrado nesse debate: os adversários da saúde pública não deixaram de existir com a Constituinte de 88. Na verdade, após a nova Carta, eles apenas mudaram sua forma de agir e passaram a sabotar o SUS internamente. Afinal, não podemos esquecer que a luta pela criação do Sistema Único de Saúde (SUS) enfrentou monopólios poderosos. Foi, sem dúvida, uma das batalhas mais duras e difíceis que o nosso povo travou. Ela culminou, no ano de 1988, com a garantia constitucional da saúde como um “direito do cidadão e um dever do Estado”. Sem dúvida, uma grande vitória.
No entanto, infelizmente, 23 anos depois, este preceito ainda não se tornou realidade para a maioria do povo. Apesar do avanço político de 88, iniciou-se naquela mesma época uma onda neoliberal que ganhou fôlego no Brasil e no mundo. Por conta disso, vivenciamos, desde então, uma verdadeira “cruzada” contra as conquistas sociais e o patrimônio do povo. Infelizmente, a saúde não escapou a tudo isso. Derrotados em seu intento de impedir a criação do SUS, os privatistas, como dissemos, passaram a agir para destruí-lo. E são exatamente os gestores públicos, tão criticados por suas debilidades – muitas delas reais – um dos setores que seguem lutando contra eles.
NEOLIBERALISMO
No geral, a partir do governo Collor e FHC, o discurso era uníssono: diminuir o Estado, privatizar, demitir funcionários públicos, para “aumentar a eficiência”. Na saúde, em particular, três armas foram utilizadas contra o SUS: a imposição do sub-financiamento crônico, a sabotagem da consolidação do sistema e a orquestração contra a gestão pública. Os dados do grau de sub-financiamento a que foi submetido o sistema de saúde, revelam o quanto ainda falta lutarmos em favor do SUS.
De acordo com o relatório da OMS, o Brasil está entre os 24 países que menos destinam recursos à Saúde. No ano 2000, o país designava 4,1% do orçamento nacional para esta área. A partir de 2003 houve um crescimento, levando esta porcentagem a 8,6%, porém, esse número ainda representa menos da metade da média mundial, de 13,9%. Em países desenvolvidos, cerca de 16,7% do orçamento vai para a Saúde. Em 2011, a Lei Orçamentária da União destinou R$ 77 bilhões para o Ministério da Saúde. No entanto, este montante representa menos de 2% do PIB projetado para 2011. O percentual mínimo estabelecido pela OMS para países com a saúde universalizada é que sejam gastos pelo menos 6% do PIB com a saúde pública. Somando-se os investimentos estaduais e municipais, os recursos públicos nos últimos anos não chegam a 3,6% do PIB.
No total, o Brasil gasta 8,4% do PIB em saúde. Números que aparentemente colocariam o país no patamar de nações como Holanda (8,9%), Noruega (8,9%), Itália (8,7%), Inglaterra (8,4%), Espanha (8,5%) e Austrália (8,9%). Só que, deste total, 58% é consumido no setor privado. E apenas 42% ficam na saúde pública. Países que possuem um sistema universal de saúde como o nosso devem necessariamente apresentar um predomínio dos gastos públicos. O gasto per capita em saúde no Brasil é de R$ 837, mas no setor público ele é de R$ 390. Esse número chega a US$ 2.671 na Espanha, US$ 2.686 na Itália, US$ 2.992 no Reino Unido e US$ 3.357 na Austrália. Em relação ao orçamento previsto para 2011, só 3,64% são destinados para a saúde pública, enquanto a previsão de gastos com juros reais no ano é de 8,63% (R$ 169.870.725.435,00), ou seja, mais do dobro do que é destinado para a saúde.
O Estado, apesar de ficar com apenas 42% do total gasto em saúde, atende 80% da população, cerca de 160 milhões de pessoas. Enquanto isso, o setor privado, que movimenta quase 60% do total dos recursos, o faz no atendimento de apenas 20% da população. É por essas e por outras, que deve ser muito fácil a tão decantada “gestão privada”. Mas, em que pese a escassez de recursos públicos, as estatísticas de atendimentos do SUS são avassaladoras, quando comparadas com o setor privado. Certamente temos que avançar bastante na qualidade da gestão do SUS. Mas é necessário reconhecer que a gestão pública da saúde, nas condições em que ela se desenvolve, é, no mínimo, heroica.
Voltando às emergências. Elas estão lotadas, sim. Mas é evidente que isso ocorre porque os recursos para a atenção primária são ridículos. Apenas 30% do orçamento da saúde é destinado à atenção primária. É fato inquestionável que, com esses recursos, não pode haver postos de saúde, médicos de família, unidades de pronto atendimento e ambulatórios na quantidade necessária para atender as necessidades crescentes da população.
Mesmo a relação leito/pacientes, que no Brasil se aproxima da taxa considerada adequada, 2,5 e 3 leitos para cada mil habitantes, não expressa a realidade do país. Este índice inclui milhares de leitos privados, quase todos inacessíveis à grande maioria da população. Os leitos conveniados do SUS também são insuficientes e vêm diminuindo. Só na Região Metropolitana de São Paulo, 15 hospitais privados conveniados ao SUS fecharam as portas nos últimos cinco anos. Segundo o IBGE, entre 2005 e 2009 o país perdeu 11 mil leitos de hospitais. No mesmo período, enquanto os leitos particulares diminuíram 5,1%, os do SUS aumentaram 2,6% – não foi suficiente.
PRIVATIZAÇÃO
Para agravar a situação, em grandes cidades brasileiras, como São Paulo, Rio de Janeiro, Salvador, e outras, as unidades de saúde pública, por conta da capitulação à campanha de difamação contra a gestão pública, estão sendo entregues diretamente a grupos privados. As organizações sociais (OSs) que assumem essas unidades passam a adotar a lógica privada. Não trabalham mais com “portas abertas”, viram “referência” e não realizam mais procedimentos complexos e dispendiosos. E, mais, conforme denúncia divulgada recentemente, 80% das OSs, “gestoras” privadas da saúde, não prestam contas dos recursos recebidos. Um verdadeiro escândalo. Já os hospitais que se mantêm públicos, permanecem com suas portas abertas e seguem sendo rigorosamente controlados. Geralmente atendem as emergências 24 horas. Acolhem todos os casos que chegam em sua porta, e, evidentemente, permanecem lotados. Muitas vezes, na maioria das regiões, o pronto-socorro do SUS é a única alternativa de atendimento à população num raio de muitos e muitos quilômetros.
A falta de recursos e de investimentos na atenção primária, somada ao “fechamento” das portas das unidades administradas por OSs, acaba forçando a população a procurar as emergências. É por isso que elas estão se tornando inviáveis. Qualquer um sabe que a grande maioria dos pacientes que procura atendimento nos PSs dos grandes hospitais poderia ter seu problema resolvido em unidades de atenção primária. Cerca de 80 a 90% dos atendimentos são de casos leves. Somente 10% a 20% deles precisam realmente de intervenção emergencial. E, com as emergências lotadas, as vagas nas enfermarias também desaparecem. Não há como evitar isso. Essas vagas são ocupadas tanto pelos pacientes emergenciais como pelos doentes de ambulatório. Por mais que se agilizem internações e altas, as enfermarias desses hospitais não têm como atender a demanda.
E se não bastasse essa situação, surgem agora as imorais “duas portas”, criadas em hospitais públicos do país. Nascidas nas entranhas da “gestão privada”, elas trazem como consequência dificuldades cada vez maiores para a referência e a contra referência dos pacientes e também para a realização de exames complementares. Isso desarticula o sistema. Os pacientes do SUS passam a esperar em filas cada vez maiores para conseguir internações e exames. No Incor de SP, por exemplo – onde essa imoralidade virou até lei – para um paciente do SUS conseguir um exame demora meses, enquanto para o paciente particular ou de convênio tudo é feito na hora. Internação, então, nem se fala.
São esses, a meu ver, os principais problemas que devem ser enfrentados nos debates e nos fóruns de decisão sobre a saúde pública no Brasil. Enfatizar a falta de verbas e a falta de prioridade na saúde. Barrar a destruição do SUS, impedir sua privatização e derrotar os sabotadores incrustados no interior do sistema. Seguir defendendo o fortalecimento do Estado e da saúde pública. Transferir recursos da especulação para garantir o necessário aumento das verbas para a saúde. Essas são, em minha opinião, as bandeiras que garantirão o fortalecimento do SUS e viabilizarão a humanização real da saúde no Brasil. Certamente, com o aprofundamento dessas discussões, estaremos em condições de avançar muito também no tão almejado aperfeiçoamento da gestão pública em saúde.
http://www.saudecomdilma.com.br/index.php/2011/06/28/7165/
Nenhum comentário:
Postar um comentário