Os contrastes da indústria da cana
Os contrastes da indústria da cana
O setor sucroalcooleiro é um dos que mais cresce no país, fechou 2010 com safra recorde, mas abriga as piores condições de trabalho.
Por Roney Rodrigues
A porcelana branca com motivos azuis chega com o café. “Dá licença”, diz Andréia, a secretária, colocando a bandeja de prata sobre a mesa.
“Açúcar ou adoçante?”, pergunta “o Doutor”.
“Açúcar, por favor”.
“Ah bom”, exclama, brincando. “Cada vez que se usa adoçante é uma colher de açúcar que se joga fora. Mas agora eu só posso tomar com adoçante, tenho diabete”.
Parece ironia do destino um dos homens que mais produziu açúcar na história do país não poder consumi-lo. O usineiro Cícero Junqueira Franco, ou “o Doutor”, tem os cabelos brancos e ainda mantém o mesmo bigode de sua juventude, agora, claro, já prateado pela idade. Ele é apontado como um dos pais do Proálcool, quando em 1975, juntamente com o engenheiro Lamartine Navarro Júnior e o empresário Maurílio Biagi, encaminhou para o governo um estudo garantindo que o álcool poderia mover a frota nacional, então às voltas com a primeira crise do petróleo.
“Hoje, eu estou com mais cara é de avô do Proálcool”.
Cícero Junqueira ri solto, tombando o corpo no encosto acolchoado da cadeira. “Mas não é verdade não, é um mito que se criou”, diz se aproximando como quem vai confidenciar algo. “O Proálcool nasceu antes de mim, mas foi engavetado e ficou muito tempo como uma alternativa para a falta de recursos do Brasil. Com o petróleo barato e as facilidades que o Brasil e o mundo tinham de abastecimento, o Proálcool foi esquecido. Nós aproveitamos a experiência do passado para criar um programa que prolongasse o petróleo para as gerações futuras. Então exumamos o Proálcool”.
O programa foi baseado em uma forte intervenção do Estado no setor. Por lei, eram definidos preços, políticas de produção, as áreas e até quem deveria produzir. Tudo isso mediante o fornecimento de subsídios para a produção maciça de álcool. Em troca, o governo militar incentivou a grilagem de terras para o cultivo de cana e fez vista grossa em relação à violação de direitos trabalhistas.
“Era uma euforia parecida com a de hoje, só que em outra escala”, relata Cícero Junqueira. “Naquela época o setor era menor e mais contingenciado. Hoje tem uma diferença fundamental: a iniciativa privada está totalmente liberada da intervenção do Estado. Isso cria um horizonte para o empresário investir no setor e desenvolve-lo”.
E o setor vive eufórico frente a esse “horizonte” neoliberal. Atualmente, o governo só intervém no mercado por meio de medidas regulatórias de adição de álcool à gasolina. Segundo a Companhia Nacional de Abastecimento (Conab), a produção nacional de cana-de-açúcar moída pela indústria sucroalcooleira em 2010 chegou a 625 milhões de toneladas, uma safra recorde, com aumento de 4% em comparação ao ano passado. O Brasil tem o segundo maior programa de álcool do mundo, atrás apenas dos EUA.
O mundo, que sempre exportou açúcar brasileiro, agora está de olho no álcool, ao mesmo tempo em que também faz investimentos pesados na área, como a extração do etanol a partir da beterraba na Europa e do milho nos EUA. O que promove a retomada destes projetos engavetados durante anos são as previsões alarmistas para o preço do petróleo nas próximas décadas
“Apesar das descobertas de reservas de petróleo, o Brasil continua sendo uma economia energeticamente diversificada. Estamos, claramente, entrando na era pós-petróleo”, afiança Marcos Jank, presidente da União da Indústria de Cana-de-Açúcar (Unica).
Denúncia na OMC
A Unica representa mais de 123 companhias e tem papel chave na articulação e reivindicação do setor junto ao governo e a demais setores da sociedade. Apesar de hoje o agrocombustível destinar-se basicamente ao mercado interno e o açúcar dominar as exportações, a Unica prevê um crescimento de exportações de etanol e prepara um pedido de litígio na Organização Mundial do Comércio contra dos EUA, onde os lobbies agrícolas são fortes.
Roberto Rodrigues foi o primeiro Ministro da Agricultura do governo Lula e comandou a retomada do projeto do agrocombustível brasileiro. Hoje é presidente do Conselho Superior do Agronegócio da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp) e acredita ser positivo contestar as tarifas americanas. “É muito relevante [o pedido de litígio na OMC] pensando-se no futuro; está criando-se um mercado lá fora para, quando tiver excedentes, não haver um sufoco para o setor”.
Cid Caldas, diretor de Açúcar e Álcool do Ministério da Agricultura, aposta na entrada de 3 milhões de veículos novos em 2011, sendo 80% flexfuel, o que abre margem para um gigantesco mercado interno. “Nós temos um potencial muito grande para o etanol que está sendo produzido aqui no Brasil”.
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