sábado, 12 de março de 2011

CONHECENDO O SUS: REFORMA SANITÁRIA

O Movimento Sanitário: novo sujeito coletivo
A participação social como princípio e prática política
Nesse cenário de contradições e crises, em que o Estado autoritário se vê
confrontado com sua capacidade de manutenção do modelo ou distensão para
o novo, emerge o movimento sanitário como um
“conjunto organizado de pessoas e grupos partidários ou não articu-
lados ao redor de um projeto” (Escorel, 1998), cujo desenho e con-
teúdo foram sendo construídos ao longo do tempo a partir de um conjunto de práticas que Arouca (1976) caracterizou em três níveis: a prática teórica (construção do saber), a prática ideológica (transfor-
mação da consciência) e a prática política (transformação das relações sociais) (Carvalho, 1995:48).
Aglutinador e vetor de refl exão e ação políticas (Escorel, 1998), o movimento sanitário, vindo de algumas experiências da década anterior7, inicia os anos 1980 propondo como linha tática a ocupação dos espaços institucionais e a formulação/
implementação ativa de políticas de saúde frente à crise previdenciária do Estado. Desta e nesta direção teórico-prática, a participação é elemento intrínseco cujos agentes, acumulando práticas de participação comunitária e participação popular, amadureceram-nas sob a ótica da crítica refl exiva e as aprofundaram, superaram-
nas e as direcionaram para diante, conferindo-se ao movimento sanitário o papel de agente “portador coletivo e obstinado da participação institucionalizada e perma-
nente da sociedade na gestão do sistema de saúde, como elemento estratégico do processo de reforma da saúde” (Carvalho, 1995:49).
O movimento sanitário torna-se uma experiência singular e rica no campo
da luta em torno das políticas públicas e das suas implicações para o relaciona-
mento Estado-sociedade, transformando o conteúdo da participação social nos
seguintes aspectos:
• deixa de ser referência apenas dos setores sociais excluídos pelo sistema
(seus opositores), passando ao reconhecimento da diversidade de interesses e projetos em disputa na sociedade, em sua relação com o Estado, e adquirin-
do, em conseqüência, dimensão e perspectiva mais abrangentes;
• incorpora a conotação de cidadania, que expressa a estratégia de uni-
versalização dos direitos;

• refi na a análise e a compreensão do Estado como lócus de confl ito de
interesses contraditórios, quebrando o maniqueísmo (oposição x Estado)
e os monolitismos contidos nesta polaridade (como se oposição e Estado
fossem duas entidades homogêneas);
• propõe participação, de parte instituinte a representação direta da so-
ciedade, a ser institucionalizada no interior do aparato estatal, para le-
gitimar a si própria e aos interesses de que é portadora;
• altera a perspectiva do movimento relacional entre Estado-sociedade, atri-
buindo-lhe uma possibilidade de interlocução e diálogo, em que o Estado é vislumbrado como passível de acolhimento de propostas oriundas da socieda-
de e esta como espaço de elaboração daquelas que confi gurem os interesses e reivindicações dos grupos sociais;
• compreende a auto-identidade do movimento sanitário e a identidade dos
agentes sociais presentes na disputa política como construções históricas
em processo, em movimento, superando concepções anteriores de identi-
dade fi xas, pré-determinadas (Fleury, 1989); e, fi nalmente,
• contrapõe o conceito de controle social ao controle privado do Estado por
segmentos sociais com maior poder de acesso.
Imerso em sua crise abrangente de legitimidade perante a sociedade, o Esta-
do autoritário-militarista enfrenta, no início da década de 1980, a crise de suas
políticas setoriais, entre as quais a da previdência e da saúde, como resultado
da recessão, desemprego, aumento da dívida pública e queda da arrecadação.
Nesse contexto, recorre a algumas medidas no sentido de escuta de segmentos
sociais, como a criação do Conselho Nacional de Administração de Saúde Previ-
denciária – Conasp, em 1981.
Instituído pelo Decreto nº 86.329/81, como órgão do Ministério da Pre-
vidência Social, o Conasp era de representação mista, não paritária, entre Estado e sociedade, com predominância desta última, embora com sub-re-
presentação da classe trabalhadora. Deveria atuar na organização e aperfei-
çoamento da assistência médica e na sugestão/elaboração de critérios para a racionalização dos recursos previdenciários destinados à assistência (Inamps). Em sua atuação, o Conasp foi tornando visíveis os projetos em disputa na arena das políticas públicas de saúde: (a) o conservador privatista – do setor A MOBILIZAÇÃO INSTITUINTE (DÉCADAS DE 1970 E 1980)

A MOBILIZAÇÃO INSTITUINTE (DÉCADAS DE 1970 E 1980)
privado contratado; (b) o modernizante privatista – dos interesses da medici-
na de grupo; (c) o estatizante – dos técnicos ministeriais e da oposição; (d) o liberal – de parte dos técnicos e da medicina liberal. Segundo Carvalho (1995), predominou uma aliança entre o pensamento
médico-liberal (situado no comando do Inamps) e técnicos vinculados ao pro-
jeto contra-hegemônico (situado no aparelho previdenciário), com a derrota do
segmento privado contratado. As ações do órgão combinaram uma lógica de
modernização, controle e austeridade gerencial com a crítica ao modelo médi-
co-assistencial privatista vigente, em algumas de suas relações: público-privado,
ambulatório-hospital e prestadores-clientela. Propôs-se, como princípio estraté-
gico, o gradualismo político (alcance gradual de metas) na mudança do sistema,
sem afetar, de imediato, o setor privado e o centralismo, e com um esboço de
participação social.
Duas medidas do Conasp vão dando contorno ao redirecionamento do mo-
delo assistencial no plano gerencial: a introdução da AIH – Autorização de Inter-
nação Hospitalar e das AIS – Ações Integradas de Saúde8 entre o Ministério da
Previdência e Assistência Social, o Ministério da Saúde e as secretarias estaduais
de saúde, promovendo a transferência fi nanceira do governo federal para os de-
mais entes federativos, segundo o princípio de universalização do direito à saúde
e de responsabilidade pública para garanti-lo.
Também foram instituídas comissões interinstitucionais de saúde nos vários
níveis federativos – CIS, Cris e Cims ou Clis9 – com a participação de gestores go-
vernamentais, prestadores públicos e privados, profi ssionais e usuários, em um
processo paulatino, que combinava articulação intergovernamental com concer-
tação de interesses. Embora essa experiência, de acordo com Carvalho (1995),
emergisse da lógica racionalizadora da gestão do Estado, foi se tornando per-
meável aos princípios e ações democratizantes do movimento sanitário, através
de seus agentes técnicos localizados na direção da previdência, convertendo-se
em um marco inaugural da institucionalização da participação. As comissões se
multiplicaram no país, num ritmo bastante rápido, abrindo espaço a novos sujei-
tos políticos, embora seu desenvolvimento institucional tenha sido diferenciado
de acordo com a correlação de forças políticas entre os sujeitos participantes nos
respectivos locais de funcionamento10.

Analisando a experiência das AIS, Rodriguez Neto (1988:34) assinala:
Nesse sentido, as Ações Integradas de Saúde são conservadas como pro-
postas estratégicas, como proposta de avanço funcional, mas se cobra
que ela não é sufi ciente. Ela é necessária, mas não é sufi ciente. É neces-
sário, então, se avançar em propostas de transformação um pouco mais
estrutural, na perspectiva do Setor de Saúde. Quer dizer, mudanças de
reorganização profunda, na forma de relacionamento, nas atribuições
das instituições do Setor de Saúde que vão fazer parte, portanto, do
corpo programático, que vai formar, ou pelo menos, pretendia formar, o
programa de saúde na Nova República.
Em meio a esse embate entre sociedade e Estado, em torno das políticas
de saúde, processava-se, no plano político, a transição do regime militar para a
democracia representativa formal.

fonte: Ministério da Saúde/ Histórias da Reforma Sanitária

e do Processo Participativo

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