domingo, 8 de janeiro de 2012

Testemunho - Maria Prestes, 80 anos

domingo, 8 de janeiro de 2012

Maria Prestes, durante 40 anos companheira de vida do Cavaleiro da Esperança

Da Folha de São Paulo (08/01/2012)

RESUMO A pernambucana Maria Ribeiro Prestes viveu por 40 anos com Luiz Carlos Prestes [1898-90], dirigente do PCB, 34 anos mais velho. Os dois se conheceram quando ela, militante, foi destacada para fazer a segurança dele na clandestinidade, nos anos 50. Para enganar a vizinhança, o chamava de Pedro, apelido que ficou. Em seu apartamento, no Rio, cheio de recordações do exílio em Moscou, ela lembrou passagens dramáticas de sua vida.

Meu pai, João Rodrigues Sobral, era camponês de Poção (PE). Em Recife, trabalhou numa fábrica de óleo de mamona e depois abriu um armazém no bairro onde nasci em 1932. Ele via pessoas furtarem feijão, um pedaço de carne. Ficava revoltado com a pobreza.
O armazém era frequentado por pessoas de ideias evoluídas, que o levaram ao Partido Comunista. Tornou-se um revoltado, como se dizia. Era analfabeto, eu ensinei meu pai a ler e escrever.
Em 1935, minha mãe faleceu e teve aquele movimento [Intentona Comunista]. Meu pai foi preso, torturado. Depois, deportado de navio para o Rio, mas na Bahia se jogou no mar. Voltou para Recife a pé e passamos à clandestinidade.
Em Recife, entrei na Juventude Comunista. Distribuía volantes, fazia pichação. Fui presa, rasparam a minha cabeça. Vi o Prestes pela primeira vez em 1945, num comício da campanha dele para o Senado. Eu fiz a segurança dele com outros jovens.
SEGURANÇA
Aos 18 anos arranjei um marido, que não deu certo. Meu pai estava em São Paulo, doente, e me mandaram para a casa dele. Morreu em 1952 incógnito porque usava outro nome. Nunca soubemos onde foi enterrado.
Na época o registro do partido tinha voltado a ser cassado. Me disseram que eu ia cuidar de um dirigente. Só vi quem era no dia em que Prestes chegou. Ele ficou até 1959 sob minha responsabilidade.
Antes eu era Altamira Rodrigues Sobral, e, por segurança, me deram documentos em nome de Maria do Carmo Ribeiro, nascida em 1930.
Na época o Giocondo Dias [dirigente comunista, 1913-1987] nos dava assistência. Eu tinha já dois filhos, Pedro e Paulo. Um belo dia Prestes propôs casamento. Eu disse que já tinha sido frustrada, que não aceitava assinar papel com ninguém. Ele disse que tinha gostado de mim.
"Não posso ser uma boa companheira porque não sou intelectual que nem você, sou uma pessoa comum", respondi. E ele: "Se fosse casar com uma intelectual, os nossos pensamentos iam estar sempre em contradição".
"Tudo bem, se não der certo você vai para um lado e eu para o outro", eu disse.
Nunca casamos no papel. Vivemos 40 anos juntos e nunca brigamos. Ele valorizava o trabalho da mulher e da mãe. Gostava de criança, cozinhava, fazia biscoito, bolo, bacalhau à portuguesa, descascava um bom abacaxi.
Me ensinou a ler os clássicos, Shakespeare, Dickens, Górki, Dostoiévski. Toda semana eu e o Giocondo tínhamos aula de leitura com ele.
Um motorista, o José das Neves, aparecia em público comigo e as crianças, fazendo as vezes de marido. Para os vizinhos não perceberem que tinha mais gente na casa, a gente chamava o Velho de Pedro, nome do meu filho. Chamei ele de Pedro até o fim.
Tive o João, a Rosa, a Ermelinda. Quando veio a semilegalidade [no final do governo Juscelino Kubitschek], tive o Luiz Carlos, a Mariana, a Zóia e o Yuri. Um dia eu disse, "vamos parar?". E ele: "Deus quer, né. Vamos ter filhos". Gostava de família grande, achava que devia dar continuidade à vida.
As crianças não sabiam que ele era o pai, chamavam de tio. Todos só foram saber depois, em Moscou.
Depois de 1964, Prestes teve que se esconder de novo, mas eu não podia porque tinha os filhos em idade escolar. Tinha uma câmera em frente à nossa casa filmando quem entrava e saía.
Mesmo assim, me encontrava com Prestes. Até viajamos. Levantei a proposta de irmos embora. Fui com as crianças em 1970 para Moscou e nos deram um apartamento de onde a gente via a Praça Vermelha. Em 1971 o Velho chegou.
Queriam que eu botasse os meninos numa escola para filhos de estrangeiros. Eu disse que preferia que fossem estudar com os filhos das pessoas comuns. Eles não sabiam uma letra de russo, mas o PC soviético botou uma professora que ia três vezes na semana dar aula para nós.
Ainda falo russo. É um idioma muito sonoro, meigo. Meus filhos se formaram lá.
Conheci todas as 17 repúblicas soviéticas e muitos países europeus. Nossa casa era mais frequentada do que a Embaixada do Brasil. Fazíamos sempre feijoada.
COMUNISMO
A readaptação foi complicada. Tinha o Comitê da Anistia que nos ajudava, o Oscar Niemeyer, o João Saldanha.
Acho que ainda sou comunista, sim. A exploração do homem pelo homem não acabou. No sistema socialista não tinha desemprego. Havia problemas, mas o povo trabalhava e recebia salário.
Tenho 24 netos e nove bisnetos. Todo ano a gente se reúne no aniversário do Velho, 3 de janeiro. Os meninos criaram o blog [mariaprestes.blogspot.com], mas não gosto muito. Com a internet, as pessoas não se encontram.
Ainda vou a atos políticos. O exercício que faço é andar. Gosto de cinema, do Almodóvar. Esse filme "A Pele que Habito" é impressionante.
De vez em quando faço uma sopa russa de beterraba e convido minhas amigas. Chamo meus filhos e a gente faz uma noite de russo, eles cantam, recordamos alguns momentos. Se fosse me preocupar com o passado, não era o que sou. Acho que a gente tem que ser otimista, almejar algo melhor.
FOLHA.com
Leia o depoimento de Maria Prestes na íntegra
www.folha.com/no1031285

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