terça-feira, 10 de janeiro de 2012

Por que os grandes não cuidam dos pequenos?

Estudos recentes tem mostrado que, junto com a crise econômico-financeira ocorrida a partir de 2008, está se consolidando uma rede de poder corporativo mundial feito por um pequeno grupo de megacorporações multilaterais que controlam grande parte de todo o processo econômico-financeiro globalizado e que, em parte, estão na raiz da atual crise nos países centrais.

Notoriamente estão ocorrendo mais e mais fusões de empresas a ponto de no final restar pouco mais de uma centena. São espantosamente poderosas que, articuladas entre si, controlam grande parte do poder econômico, politico e cultural do mundo.
Estas megacorporações, engenhosamente, descobriram que, em vez de guerrearem entre si numa tresloucada concorrência é mais vantajoso para elas trabalharem juntas e assim assegurarem mais poder global. Acabaram formando um pequeno núcleo de poder, pouco conhecido, mas que está sendo mais e mais desvendado por investigações sérias de grandes centros de análise da macroeconomia. Só para citar uma dessas, a do Instituto Federal Suíço de Pesquisa Tecnológica que rivaliza em seriedade ao MIT de Harvard. Publicou recentemente um estudo rigoroso, bem resumido e comentado pelo economista da PUC de São Paulo Ladislau Dowbor (http://dowbor.org/wp). Deste núcleo de poder depende a maioria das outras empresas ou estão simplesmente subordinadas a ele, influenciando as decisões económicas e políticas dos Estados.
Ultracapitalista que é, este núclero só pensa em si mesmo e nas vantagens para seus acionistas, desconsiderando a degradação da natureza, o aquecimento global já praticamente irrefreável, o aumento escandaloso do fosso entre ricos e pobres e o crescimento ameaçador do número de famintos em todo o mundo, inclusive nos países centrais.
Quem pensa hoje, de forma estratégica e séria, na sorte dos pequenos e dos sem poder, que formam a grande maioria sofredora da humanidade? Até as Igrejas preferem voltar-se para dentro, reforçar sua estrutura religiosa de poder, ao invés de, fiéis ao legado de Jesus, escutarem o grito lancinante que se dirige ao céu em busca de pão, água e trabalho e assumir uma atitude profética de denúncia e anúncio de uma outra ordem necessária.
É neste contexto que me veio à mente um dos mais belos mitos dos indios Maué, da área cultural do Tapajós-Madeira. Ele nos faz refletir muito e seriamente.
Reza o mito: Quando o mundo foi criado não existia a noite. Havia só o dia e a luz penetrava em todos os espaços. Esta luz só não chegava nas águas profundas do rio. Os Maué, por mais que quisessem, não conseguiam dormir. Viviam cansados e com os olhos irritados pelo excesso de luz.
Certo dia, um deles encheu-se de coragem e foi falar com a Cobra Grande, a sucuriju, toda escura, considerada a senhora absoluta da noite. Era ela que mantinha a noite presa no fundo mais fundo das águas.
A Cobra Grande ouviu as lamentações do índio. E vendo a pele dele, amorenada pelo sol escaldante e os olhos avermelhados pelo excesso de luz, teve pena dele. Relutando muito, porque sabia dos riscos, propôs um pacto:
“Eu sou grande e forte. Sei me defender. Não preciso de ninguém. Mas muitos dos meus parentes são pequenos e indefesos. Ninguém cuida deles. Especialmente vocês andam por ai sem olhar onde pisam e assim os matam sem piedade. Como eles vão se defender? Então, eu lhe proponho a seguinte troca: você me arranja veneno e eu cuidarei de distribui-lo entre os meus parentes pequenos indefesos. Os grandes não precisam dele porque podem se defender sozinhos. Assim você, Maué e sua comunidade, quando caminharem por aí, olhem bem onde vão meter os pés para não pisar nos bichinhos pequenos. Agora eles terão como se defender. Em troca lhe darei um coco cheio de noite”.
O Maué aceitou proposta. Correu para o mato e logo estava de volta com o veneno para a Cobra Grande. E ela imediatamente o distribuiu entre os parentes pequenos e vulneráveis. Em troca entregou ao índio Maué um coco, cheio de noite. No momento da troca, ela ainda recomendou: “De jeito nenhum abra o coco fora da maloca”.
O índio prometeu manter o pacto. Mas os demais membros da comunidade ficaram loucos de curiosidade. Queriam conhecer naquele momento mesmo a tão ansiada noite. Juntaram-se em roda e no meio do roçado abriram o misterioso coco. E foi então que sobreveio a desgraça: trevas cobriram o mundo. Não se via mais nada. E uma angústia imprevista e terrível invadiu o ânimo dos Maué.
Houve uma correria geral. Ninguém pensou nos bichinhos pequenos que já haviam recebido veneno da Cobra Grande. Os primeiros a receber foram as aranhas, as cobras pequenas e os escorpiões. Todos esses se defenderam das pisadas dos índios mordendo-lhes os pés e as pernas. Foi aquela calamidade.
Os poucos que sobreviveram às mordidas venenosas, sabem agora como devem se comportar. E a partir de então todos começaram a tomar cuidado com os bichinhos pequenos para não pisar neles e não serem mordidos, convivendo pacificamente e no maior respeito ao seu tamanho.
Esse é o mito. Agora perguntamos: por que será que nossos grandes, as megacorporações de poder, não tiram algumas pequeníssimas porcentagens de seus trilhões de dólares em capitais especulativos (a taxa Tobin que oscila entre 0,05 a 0,2%) que seriam suficientes para cuidar de todos os famintos e sedentos da Terra? Não estariam eles mais felizes e seguros? Mas como são extremamente individualistas, sequer pensam nisso.
E se um dia, os empobrecidos e injustiçados do mundo despertarem e se rebelarem como no norte da África e ocuparem as principais praças como na Europa e nos EUA reclamando trabalho, direitos, dignidade e chance de participar nos destinos do próprio pais? E se eles abrirem o coco misterioso que carregam e começarem a fazer demonstrações diante das sedes dos monstros entre os quais estão instituições financeiras como o Berclays Bank, JPMorgan Chase&Co, Goldman Sachs e semelhantes? Que acontecerá com esses ricos epulões face aos milhares e milhares de pobres lázaros indignados?
São questões a serem refletidas agora antes que seja tarde demais.
Leonardo Boff é autor de O Casamento entre o céu e a Terra. Contos dos povos indígenas do Brasil, Moderna 2001.

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