Resquícios de ditadura |
Escrito por Marcelo Badaró Mattos |
Sexta, 11 de Novembro de 2011 |
“Era só mais uma dura Resquício de ditadura Mostrando a mentalidade De quem se sente autoridade Nesse tribunal de rua” Marcelo Yuka Quando acordamos ao som da tropa de choque da PM no interior da maior universidade pública brasileira, reprimindo manifestações e prendendo estudantes, é difícil acreditar que a ditadura acabou há mais de 20 anos no Brasil. A letra de Tribunal de Rua, de Marcelo Yuka, é precisa em identificar outro dos mais evidentes resquícios da ditadura empresarial-militar, que sobreviveram ao processo de redemocratização das últimas três décadas. A naturalização de violência policial no dia a dia das “operações” em favelas e periferias é evidentemente uma das heranças nada benditas dos mais de vinte anos de regime ditatorial. E é apenas uma das peças de um conjunto muito mais amplo de aberrações decorrentes da militarização exacerbada e autonomização em relação às regras legais do aparato policial, posto a serviço não apenas da repressão política aos que ousaram enfrentar a ditadura, como também mobilizado para as estratégias de controle social mais cotidianas. É difícil não enxergar nesses “resquícios” a origem de deturpações como a sistemática utilização da tortura como método de “investigação”. Sim, a tortura a presos políticos já possuía uma história mais longa, tendo sido largamente empregada pela ditadura de Vargas e mantida viva na repressão aos movimentos dos trabalhadores nos anos seguintes. Foi, entretanto, com a ditadura que se instalou em 1964 que as forças policiais, sob comando militar, foram generalizadamente treinadas e orientadas para empregar tais métodos criminosos como regra de combate aos militantes de esquerda. E os mantiveram como rotina no trato com os “suspeitos” de quaisquer ilegalidades, desde que oriundos da classe trabalhadora. Decorre da mesma origem a atribuição ao aparato policial da garantia do exercício do poder político pelos apoiadores do regime nas zonas metropolitanas das grandes cidades, através do emprego sistemático da violência contra a população mais pobre. Reportagens investigativas e estudos universitários já demonstraram como na Baixada Fluminense, antes do golpe de 1964, a violência já era instrumento do fazer político local. Porém, após a tomada do poder pelos militares, o monopólio da violência, “não consentida” e “não legítima”, passou das mãos de pistoleiros e bandos privados (sempre ligados aos políticos locais) para as dos agentes da “segurança pública”. O fenômeno dos “esquadrões da morte”, comprovadamente vinculados às polícias e aos políticos da região, foi a face mais evidente desse outro lado do “resquício” ditatorial. A praga das milícias – máfias constituídas por policiais e outros agentes da “segurança pública” –, hoje visível em função, particularmente, do trabalho da CPI instalada na Assembléia Legislativa do Rio de Janeiro em 2008, tem por certo suas raízes nessa herança ditatorial. Ma, a história não pode absolver a responsabilidade dos políticos e alianças partidárias que dirigiram o estado e as municipalidades do Grande Rio nas últimas duas décadas. Discursos coniventes, como o de César Maia, ao defini-las como “autodefesa comunitária” e, especialmente, a aliança política que garantiu voto para muitos dos que hoje estão nos Executivos e Legislativos (incluindo vários milicianos), são indicações suficientes para evitar dúvidas sobre a responsabilidade pela multiplicação dessas deformações dos governos passados e atuais, tanto das coligações DEM-PSDB, quanto da aliança PMDB-PT, e das legendas menores que a eles se juntaram. Nos últimos dias, a saída do país do deputado estadual Marcelo Freixo – que presidiu aquela CPI e continua tornando público o terror das milícias –, após o crescimento no número de denúncias de planos para matá-lo, lembrou outra face da ditadura: o exílio. De fato, a viagem de Marcelo deve durar menos tempo do que o longo exílio dos perseguidos dos anos 1960 e 1970, mas o fato de ser necessário esse gesto extremo para alertar a sociedade para a inoperância dos governos em garantir não apenas a vida do deputado, como também a de todas as pessoas ameaçadas constantemente pela ação das milícias, deve ser suficiente para que questionemos mais uma vez: até que ponto os mecanismos repressivos da ditadura empresarial-militar foram desmontados, ou será que sobreviveram em novas roupagens nos tempos de ditadura de mercado? Regimes democráticos podem ser apenas outra face política do exercício da dominação de classe, mas temos o dever de exigir de nossos governantes que as garantias democráticas sejam efetivas e não apenas uma fachada. Cabe aos governos federal e estadual demonstrarem real disposição de desmontar as milícias, não apenas prendendo (e às vezes deixando fugir) alguns líderes, mas secando suas fontes de lucro. Cabe aos governantes garantir que o deputado e sua família retornem em segurança e assim sejam mantidos. Ou sobre eles pesará sempre a suspeita de conivência (para não falar em associação política) com as criminosas máfias milicianas. Marcelo Badaró Mattos é professor do departamento de História da Universidade Federal Fluminense (UFF) |
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