segunda-feira, 14 de março de 2011

MADRE MAURINA, UMA VIDA DOADA AO POVO!

Madre Maurina PDF Imprimir E-mail
História
Sergio Granja   
Qua, 09 de Março de 2011 15:35
Madre MaurinaMadre MaurinaMadre Maurina Borges da Silveira (1926-2011), da Ordem Terceira de São Francisco, mineira de Perdizes, atuou no México, em Santa Catarina e em São Paulo. Foi torturada durante a ditadura militar no Brasil e morreu no último sábado (5 de março de 2011) em Araraquara, São Paulo, aos 87 anos, devido a falência múltipla dos órgãos.
Em outubro de 1969, a religiosa fora presa no Lar Santana, orfanato que ela cuidava em Ribeirão Preto, acusada de envolvimento com militantes das FALN (Forças Armadas de Libertação Nacional). No local onde atualmente funciona a Delegacia Seccional, madre Maurina foi torturada com choque elétrico por pelo menos duas horas seguidas.  A irmã permaneceu um ano presa em São Paulo, até ser libertada do cárcere e levada para o exílio no México por força da ação revolucionária de um grupo guerrilheiro da VPR (Vanguarda Popular Revolucionária), que sequestrou o cônsul japonês em São Paulo, Nobuo Okuchi, trocando-o pela religiosa e outros presos políicos.
Dos seus torturadores, dois foram excomungados: os delegados Renato Ribeiro Soares e Miguel Lamano, ambos a serviço da então OBAN (Operação Bandeirantes).  "Foi o arcebispo d. Felício da Cunha quem excomungou os dois, por causa das torturas contra presos políticos e das maldades feitas contra madre Maurina. Foi com o caso de Ribeirão que comecei a minha luta pela justiça social", declarou d. Paulo Evaristo Arns.
Numa entrevista de junho de 1998 ao Jornal do Commercio de Recife, Madre Maurina levanta suspeitas de que tenha sido vítima de vingança de famílias abastadas de Ribeirão Preto:
"Agora, tem uma coisa que eu nunca disse a ninguém. É sobre os ricos de Ribeirão Preto. No Lar Santana, orfanato que eu dirigia, tinha muita criança filha de mãe solteira e rica, o que era um escândalo social para a época (1969). Então, as crianças ficavam lá, mas o lugar era para os pobres. Eram cerca de cem crianças, e pelo menos 15 eram filhas de mães solteiras e ricas. Elas estavam tomando o lugar de outras, pobres, que precisavam de fato ficar no orfanato Lar Santana. As famílias davam cheques para nós e tudo o mais, mas o correto era que as crianças vivessem em suas casas. O que eu fiz? Devolvi as 15 crianças. Fui à casa de cada uma delas e as devolvi. E eram mansões, casas enormes. Eu dizia para as famílias: 'O orfanato é lugar de criança necessitada que precisa de um lugar para viver, que não tem pai nem mãe'. Acho que isso acabou influenciando de algum jeito no que me ocorreu depois. Não sei quem eram as famílias, mas isso deve ter tido ligação com a minha prisão."
Transcrevo a seguir o depoimento de uma companheira de cárcere da irmã Maurina.
CartazesMadre Maurina
Rose Nogueira
Madre Maurina era clarinha, tão branquinha e sua pele tão rosada que, mesmo naquela situação, a gente prestava atenção.
Ocupei sua cela, a 4 do Fundão do corredor do Dops. Levaram-na para o presídio Tiradentes naquele mesmo dia para que a cela fosse ocupada por mim, pela Ana Vilma Penafiel e por Tiana, uma professora que gritava ter sido presa por engano. À noite trouxeram Makiko Kishi, presa por ter fotografado o grande Carlos Marighella logo depois de ter sido assassinado pelo Esquadrão da Morte.
Tiana estava agressiva, inconformada. Quando parou de gritar na pequena janela da porta, disse-nos mais ou menos o seguinte: "Por que vocês não são como a Madre Maurina, que falava comigo e me acalmava? Ela era o meu remédio!" E voltou a gritar: "Cadê a Madre Maurina, cadê a Madre Maurina?". Como esquecer daquela daquela noite, em que os gritos de Tiana foram abafados por outra gritaria que se s eguiu, quando os assassinos desceram para o corredor das celas festejando seu crime? Nós não éramos a Madre Maurina, a doce pessoa descrita nervosamente por Tiana. Não tínhamos a sabedoria e o poder para, numa situação daquelas, ser o remédio, o bálsamo necesário para alguém que sofria com seu próprio transtorno.
Nas vésperas do Natal, ao chegar ao presídio Tiradentes, subir a Torre e ser levada para a cela da direita, vi dois rostos na cela em frente, a maior, observando quem chegava. Um deles o da Dulce Maia querida, que eu ainda não conhecia. O outro, eu reconheci pela descrição constante de Tiana: era clarinha, muito rosada, já tinha idade, de óculos, a bondade percebida à distância. A Madre Maurina.
Ficamos juntas poucos dias, pela minha lembrança. Logo depois abriram as celas porque a cada dia chegavam mais meninas e ela foi transferida para Ribeirão Preto, se não me engano. Ocupei de novo o lugar da Madre Mauri na: fui para a cela grande, a celona, que a Dulce ocupava com a Madre. Sabíamos que tinha sido barbaramente torturada. Havia rumores que teria sido violentada. Acho que nunca houve quem lhe perguntasse isso, não sei. Lembro-me dela com um roupão florido, comprido, e para mim perguntou apenas do meu bebê, que tinha um mês na época da prisão. Contei-lhe que havia tomado uma injeção à força para cortar o leite. Ela me disse: "Foi uma descarga de estrógeno". E mais: "massageie os seios, use soutien, tenha cuidado que um dia podem aparecer nódulos...", enquanto segurava minha mão.
Esse foi nosso único contato. Ela foi embora, para uma outra prisão.
Acompanhamos, tensas, meses depois, a troca da Madre e de outros companheiros pelo embaixador. O mundo todo falou nela, a freira presa pela ditadura. Foi banida, perdeu seus direitos políticos e sua cidadania, não podia voltar ao país. Mas voltou.
Em 1979, quando era repórter do Jornal Nacional, fui escalada para cobrir o julgamento dela, que insistiu em voltar ao Brasil apesar de ter sido banida. Pedi para não ir. Gostaria de ter ido como companheira e não como profissional. Mas o chefe foi irredutível. E ainda ouvi: "sem emoção, hem, sem emoção... postura profissional!". Ele estava me pedindo o impossível.
Na auditoria militar, o mesmo lugar onde eu tinha sido julgada, anos antes, revi Madre Maurina, ao lado de dom Paulo Evaristo Arns. Dessa vez, ela ocupava uma cadeira daquelas, como a que tinha sido minha: a de ré, na segunda fila - acho que a primeira estava vazia; é assim na minha lembrança.
A imprensa só podia ficar em pé ao lado daquele pequeno auditório. Fui até a frente, queria vê-la, dei um adeus rápido com a mão, mas mandaram-me voltar para trás. Ela me olhou e sorriu.
Isso foi um pouco antes da lei da Anistia. Estava nas ruas, em todo lado, a campanha pela Anistia Ampla, G e ral e Irrestrita. Dom Paulo estava certo: era preciso furar as leis da ditadura. A vinda da Madre Maurina, para ser julgada, foi uma exigência dela e acho que um acordo dele.
Na calçada da avenida Brigadeiro Luiz Antonio todos se abraçavam. Ela fora absolvida. Mas queria voltar para o México, onde vivia num convento - explicou no microfone, à minha pergunta sobre o exílio. Depois me olhou nos olhos, sorriu, pegou minha mão e perguntou: "E o nenê, como é que está o nenê?". Nos abraçamos longamente, chorei na hora e choro agora. Voltei pro jornal, levei a maior bronca por ter me emocionado e pedi demissão - mas isso é uma outra história, que continua com o Carlito, irmão da Dulce, a dona do outro rosto da celona, que me fez voltar atrás um mês ou dois depois. Madre Maurina foi para o México, disse que ia tranquila e não pensava voltar tão cedo.
Agora está no céu.

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